quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Interlúdio entre a morte e um recomeço.

Um gelo correu na espinha de todos os presentes. Um grito desceu a escada e estapeou todos presentes, estranhamente, bem as seis da manhã. Passos correndo, mais gritos, um corpo pálido escorrido na beirada da banheira, frascos com uma listra preta cada caídos inertes e ocos, assim como o corpo. Dedos tateando o pulso, ainda uma pressãozinha suave, rítmica, de dentro... E mais gritos. Ambulância. Luzes girando e refratando através das janelas dos vizinhos. Curiosidade de desconhecidos. Solavancos. E logo, numa maca fria, sem coxa alguma, Cristian seguindo para o hospital. Seus olhos quase vitrificados, entreabertos sutilmente.
Ele balançou suavemente numa maca com rodas, depois na mesa dos médicos da emergência. As horas deslizando por entre os dentes trincados, pelos punhos cerrados, pelas pernas que balançavam agitadas, pela taquicardia. Uma lágrima, sentimento de culpa, ignorância. Depois silêncio, e mais uma ou duas lágrimas.
Um homem de branco se revela da porta para a sala semi-iluminada. Uma certeza que vibrava entre a horrenda maldiva e o delicado fio de seda. "...vivo... em risco ainda... recuperação... psiquiatra... psicólogo... secretos... crueldade... e terá sucesso." Catara tudo que precisara - a mãe - e deixara o resto. O pai de costas, as costas geladas. Não era o ar condicionado em sua direção.
E então veio a recuperação. Depois as visitas do psiquiatra. Depois as do psicólogo. Banal. Mas no terceiro dia, no quarto, a surpresa. Era ela. E os livros. Olhou-o nos olhos. Deixou algumas flores. "Vim trazer-lhe a tarefa para que não se atrase em relação a seus colegas." disse. "Todos nós esperamos pacientemente sua melhora e retorno." E sorriu. E Cristian sorriu diferente. E segurou firme em seu braço. Um susto. Ela se virou, e um beijo. Suave, estalado, tímido. Um momento de espanto. Ela cai sentada no sofá do quarto.
"Menino, o que.."
"Não sou menino" interrompe.
"Eu não sei o que di.."
"Não diga nada" responde.
"Você sabe que eu sou sua professora e que min..."
"Esqueça" interrompe.
"Mas eu não compreen.."
"Pare."
Silêncio. Olhares.
"Nunca nenhum aluno seu passou por algo assim?"
"Jamais!"
"Duvido."
"Então o que aconteceu com você foi por causa desse senti..."
"Duvide. A maioria das pessoas a nossa volta são idiotas. Odeio todos. Não odeio você."
Ela cora. Ele aperta o lençol entre os dedos.
"Todos, TODOS! Todos idiotas estúpidos que não entendem nada sobre a vida, sobre o mundo, estão obcecados demais pelo próprio traseiro para enxergar a verdade."
"Que verdade??"
"Que vamos morrer de qualquer jeito, eu só cansei de esperar."
"Não diga essas lou..."
"Pare agora. Não prossiga. Escute apenas. Existe essa coisa que sinto. Acho que somos iguais. Acho que podemos estar lado a lado e..."
"Você é só um menino, não ente..."
"Pare."
Silêncio. Ela olha para ele, ele desvia o olhar para a janela.
O psicólogo então, entra no quarto. Cumprimentos. Ela se retira. Aguarda. Não demora muito para que o homem se retire do quarto com olhar de puro espanto.
"Esse menino precisa de uma mordaça, isso sim!"
E ela, preocupada, marca uma reunião com os pais. No horário, acontece. E juntos, chegam a decisão que um terapeuta convencional não pode ajudá-lo.
"Conheço um excelente terapeuta para superdotados." Troca-se telefones. Troca-se apertos de mão.

Fim do interlúdio.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Capítulo I - Cristian

Toda quarta-feira era sempre a mesma carteira... Sempre, e de perto, eu podia sentir o perfume. O perfume das coxas. A carteira ficava ao lado da porta, bem perto de onde ela passava... Eu abaixava a cabeça, disfarçava que dormia, sempre mastigando umas batatinhas chips, e fingindo que nada acontecia. Mas era o paraíso, confesso que era o paraíso além de tudo.
A propósito, me chamo Cristian, tenho 14 anos, estudo numa escola de super dotados, estou na 9ª série do ensino fundamental. Não gosto muito dos meus colegas, mesmo sendo inteligentes. A maioria tem objetivos estúpidos para a vida, como notas, empregos emperequetados e frescuras de dinheiro. Eu queria mais. E tudo se resumia de forma muito simples: o mais era ela. O tudo era ela. Meu coração acelerado enquanto ela ensinava mais algumas palavras e pronunciávamos em coro, meu rosto de ruborizava quando ela se aproximava... Queria saber qual era a cor favorita dela, se morava numa casa ou num apartamento, se tinha família, se gostava de dançar. E se gostasse, eu aprenderia somente para dançar com ela. Tudo que eu sabia era que ela era professora de inglês, e tinha fluência em mais algumas outras muitas línguas. Ex-aluna da escola. Ex-namorada de um primo meu. Campeã de hipismo, boa desenhista. E boa professora. E usava umas saias muito grossas, e abaixo do joelho. E as coxas... Vocês podem não acreditar, mas eu absolutamente não podia resistir a sentar naquela carteira. 
Precoce, eu? Talvez um pouco, mas eu realmente odiava todos aqueles adultos ostentosos, com os ternos e a hipocrisia, as almofadas perfumadas e as ceninhas fingidas e falsas. Eu já era adulto, mas não queria ser adulto como eles eram adultos. Exceto ela. Via em tudo nela: olheiras suaves contornando os olhos, as mãos finas e arredondadas, o rosto rosado e o hábito meio ridículo de comer aqueles doces coloridos na hora do intervalo. Ela girava o lápis entre os dedos, andava com um pé na frente do outro, e a cada passo, oh agonia... As coxas. Uma tesourando a outra como se cada passo retalhasse mais um pouquinho a minha mente. Mas não era a imagem de erotismos vulgares que eu via. Eu a via de saia mais curta, esvoaçando, deitada de lado, no gramado do parque da cidade, numa toalha de piquenique com aquele verme... Essa era uma coisa nela - talvez a única - que eu odiava. O namorado dela. O jeito que ele a abraçava... A forma como a olhava nos olhos e pedia aquele beijo no rosto, apertado, que devia ser meu... Era um total boçal. Tudo que eu queria era que ele morresse. E, acima da morte dele, queria olhar novamente a cena dela no parque, deitada de lado na mesma toalha de piquenique, com a saia. Só para poder ver pela última vez as coxas e lembrar delas no meu pós-vida. Sim, meu pós-vida. Essa noite acabo com tudo.